Além de investimentos em dragagem e atracadouros, o navegador e empreendedor defende uma nova cultura que reconecte os rios à vida das pessoas e ao desenvolvimento dos municípios.

O economista, navegador, empresário e escritor Amyr Klink foi o palestrante especial do IV Encontro dos Municípios Hidroviários do RS, promovido pela Famurs, em parceria com a Hidrovias RS e o Sebrae-RS, nesta segunda-feira, dia 22/05, no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa.

O primeiro homem a atravessar a remo o Atlântico Sul abordou as potencialidades das hidrovias interiores gaúchas. “O RS foi abençoado com um privilégio muito especial, com três sistemas lacunares impressionantes, com uma malha de rios incrível. Eu naveguei por muitos deles, pelo Jacuí, Caí, e tive o privilégio de fazer toda a volta da lagoa dos Patos. É impressionante porque, de repente, muita gente fechou os olhos para esse patrimônio absolutamente ímpar, absolutamente único. Os espelhos d'água abrigados das lagoas precisam ser cuidados, dragados. Acho que é uma questão de tempo, vai acontecer”, destacou. 

Apaixonado pela navegação desde menino, Amyr fez uma reflexão que iria mudar a sua vida logo após se formar em economia. Ele relacionou o universo náutico ao desenvolvimento econômico. “Eu sempre fiquei intrigado com o que estava associado aos países que socialmente, economicamente, são exemplos de desenvolvimento. E eu reparei que os países não desenvolvidos são aqueles que não investem nos seus portos, nas suas hidrovias”, refletiu.

Conhecedor dos mares e rios do mundo, além de todas as bacias hidrográficas brasileiras, incluindo as águas interiores do RS, refere exemplos como o da França, que é rasgada de hidrovias centenárias desde o século IX, como o Canal do Midi, que vai do Atlântico ao Mediterraneo. “No Brasil, a gente nunca olhou para esse potencial hídrico. Pelo contrário, a gente vê situações que eu chamo de crimes do poder público. Por exemplo, destruíram todas as vias navegáveis da Baixada Santista para construir o sistema rodoviário Anchieta-Imigrantes”, relembrou.

Com exemplos recorrentes no Brasil de destruição de conexões hidroviárias por causa do entusiasmo pela rodovia, Amyr expõe indicadores que mostram a ineficiência do modal. Mais caro, com menos poder de tração, menos capacidade de carga, custos mais elevados, enquanto a construção de uma hidrovia é zero desmatamento, com custos por quilômetro quadrado 33 vezes menor e vida útil do sistema hidroviário cinco vezes maior.

Ele explica que esse fenômeno aconteceu em vários países latino-americanos depois da Segunda Guerra. Dessa forma, as atividades náuticas foram morrendo. “Eu não quero ficar dando conselho. Eu acho que a gente tem que construir uma nova cultura. E sobre isso que eu vim falar aqui, a gente tem que recuperar a importância que as hidrovias tiveram”, afirmou.

Ele apontou alguns exemplos do passado. São Paulo foi a maior base de vela amadora do mundo, com a maior frota de hobiecats do mundo. Porto Alegre era uma referência no mundo náutico tanto na Vela como no Remo. “A navegação faz parte da história do Rio Grande do Sul, e por alguma razão entrou em esquecimento. Um entusiasta desse potencial hidroviário é o Lauro Barcellos de Rio Grande, fundador do Museu Oceanográfico e Naútico. Ele fala muito sobre essa tradição que desapareceu”.

E lamentou algumas decisões que estão na contramão do desenvolvimento hidroviário. “Em Florianópolis, castraram as águas abrigadas da baía fazendo pontes impedindo a passagem de barcos, e ainda essas pontes foram tombadas”. Em Porto Alegre, citou com ressalvas os projetos da Orla e do Gasômetro, que reúnem a população em uma ampla área de lazer pública às margens do Guaíba para apreciar toda a beleza da paisagem, mas sem contar ainda com atracadouros modernos para embarcações visando o turismo náutico.

Outro problema decorrente da desconstrução da cultura náutica brasileira é a dificuldade de regulamentação ambiental. Para ele, a dragagem dos atracadouros é, na verdade, uma ação de proteção ambiental. “O Rio Grande do Sul tem vários rios que estão num estado de contaminação e assoreamento que tem que ser corrigido”, alertou. 

O exemplo de Paraty - Após as primeiras expedições, Amyr passou a identificar o potencial da sua cidade, Paraty (RJ), localizada em um recorte de baía naturalmente acessível por embarcações, como um lugar do futuro para o mundo aquaviário. Em pouco tempo percebeu que apenas defender novas ideias não era suficiente, e resolveu dar o exemplo. Montou a primeira estrutura flutuante para atracação de embarcações da região. “Eu percebi que às vezes a gente enxerga uma possibilidade de futuro no país que a gente ama, mas ninguém mais enxerga. Hoje é um negócio super próspero, com 700 pessoas trabalhando, e que eu administro pelo celular. A atividade tornou-se o motor principal da economia da baía da Ilha Grande e temos um prefeito que tem essa visão da importância hidroviária do município”, relatou. 

Para ele, investir em negócios náuticos é uma questão de estratégia pública. “Nesse momento deve ter uns cinquenta mil veleiros andando pelo Atlântico, que gostariam de parar no Brasil. Esses barcos da Europa podem gerar riqueza aqui. Na minha marina deve ter uns cinquenta barcos estrangeiros. Eles não conseguem visto de mais de três meses, mas eles conseguem deixar o barco por até dois anos, renová-lo por mais mais dois. A legislação é complexa, assusta um pouco, mas está melhorando”, confirmou.  

O diferencial de Porto Alegre - Nesse negócio gigantesco, o RS e Porto Alegre tem um privilégio semelhante ao de Paraty e uma pequena vantagem: a água doce. O dono da Marina do Engenho revela que nesse mercado, barcos grandes, que custam acima de 10 milhões, gastam, por ano, em média 100 a 200 mil dólares só para pintar o fundo do casco. “O barco do Bill Gates foi mandado para o Ushuaia, porque a água gelada não dá craca. Em Porto Alegre, a gente não precisa fazer (essa manutenção). Isso é um diferencial valiosíssimo para trazer embarcações de fora. Onde que tem isso? No Rio de Janeiro não tem. Na minha marina não tem. Esse pequeno diferencial tem potencial de atrair frotas do mundo todo”, sugeriu. A craca é um animal artrópode que se gruda aos cascos e rochas chegando a impedir, em grande quantidade, o deslocamento dos barcos. 

Ao vislumbrar o Brasil adotando modais modernos e atraentes, Amyr acredita que o modal hidroviário é o que melhor se encaixa na mobilidade elétrica e sustentável. Com base no exemplo de Paraty, que tem cerca de cinco mil barcos saindo todo dia com turistas, fazendo um trajeto de cinco horas, em mar calmo, ele se pergunta, porque esses barcos têm que ter combustão? "Tem tudo pra ser elétrico, mais barato, mais eficiente, e silencioso. Barcos que funcionam apenas 5 horas por dia facilitando o tempo de recarga. Nada se encaixa tão perfeitamente. Só que quem tinha que tomar a iniciativa nesse sentido é o poder público", ponderou.

Não precisa ser elitizado - O acesso ao mundo náutico é visto como elitizado, mas fora do país, segundo comenta, ninguém fala que é elitista. Ao contrário, as pessoas reconhecem como é importante para a produção de riqueza e o seu impacto social positivo. Nesse sentido, destacam-se iniciativas por parte do poder público, como aconteceu na França, a partir da percepção de que o setor envolve empreendimentos privados, que fomentam a atividade hidroviária, náutica, marinas, portos, vias navegáveis, canais, mas também iniciativas públicas. "Houve uma revolução há 30 anos e hoje o país é um expoente da vela mundial, tornando a atividade náutica mais importante do que a atividade hoteleira", por exemplo. Palma de Mallorca, cidade espanhola de 400 mil habitantes, recebe cerca de 20 mil barcos, a maioria estrangeiros, e que geram faturamento da atividade de fretamento de cerca de 6 bilhões de euros. “Todo o turismo brasileiro não chega a 8 bilhões de euros. Todos os hotéis, restaurantes, tudo que tem de turismo no Brasil é menos do que acontece nas ilhas baleares. Em questões náuticas, no Brasil, nós somos ignorantes”, provocou.

Para ele, ainda que o capital natural absolutamente surpreendente do Brasil não seja tão percebido, ele continua cada vez mais estratégico. “Nem o agronegócio vai evoluir tanto nos próximos como a indústria de charter e fretamento de embarcações. Portanto, é obrigação nossa, como cidadãos, e dos gestores públicos fazer com que isso aconteça e só tem um jeito: inspirando”.

Mudanças climáticas - O impacto do aumento da temperatura global na prática náutica é algo que Amyr tem vivenciado ao longo dos anos. Entre os fenômenos que acompanha estatisticamente e são possíveis indicadores das mudanças climáticas, está a frequência de ventos muito fortes. “Até trinta anos atrás não tinha dado sobre ventos acima de cem nós na Patagônia, e hoje é a coisa mais frequente”. Outro ponto é a radiação ultravioleta. “A primeira viagem que eu fiz para Antártica há trinta anos e até dezoito anos atrás, eu nunca passava protetor solar. Hoje, se ficar na Antártica uma hora sem camisa você vai parar numa UTI”, comentou. 

Além da falha do ozônio ser perceptível na pele, ele tem outro marcador dessa mudança. Os equipamentos náuticos de polipropileno, material sensível aos raios UVA. “Há vinte anos as correias de polipropileno duravam cinco, seis anos e hoje não duram cinco meses”, relatou. 

Ele alerta ainda para a contaminação química dos oceanos. A morte dos corais, dos sistemas de manguezais do Brasil são causados pelo excesso de poluição. E minimiza um pouco a preocupação com as ilhas de plástico nos oceanos. No caso do polietileno e do poliéster, materiais plásticos que não boiam, o problema é mais grave, mas fica escondido.

Informações da notícia

Data de publicação: 23/05/2023

Créditos: Janis Morais

Créditos das Fotos: Guilherme Pedrotti